Busca
Chat E-mail Compras
Primeira página Rede Globo


















.
METAS SOCIAIS,
para tirar a miséria do país



Marcelo Neri

Este ensaio propõe a adoção de um sistema de metas sociais para o Brasil. À semelhança das metas inflacionárias, as metas sociais buscariam coordenar as ações da sociedade para melhorar a vida de trinta e quatro milhões de brasileiros considerados indigentes. Ao governo caberia o papel de comprometer seus programas com um objetivo claro e palpável de melhorar o bem-estar da população a longo prazo.


A idéia seria colocar a performance social no topo das prioridades nacionais, perseguidas lado a lado com a estabilidade dos preços. O diagnóstico é que os níveis de renda per capita e de gastos sociais observados hoje no Brasil permitem uma melhora ampla e sustentável das condições de vida da população. A obtenção de uma distribuição mais equânime dos recursos depende, por sua vez, de uma abordagem mais focada e agressiva sobre as carências sociais.

O papel das metas sociais seria disciplinar, justificar e motivar a ação pública. O ensaio discute aspectos diversos das metas sociais, como o desejo da utilização de índices de pobreza como base do sistema proposto; a evolução recente e a distribuição espacial desses índices e analogias com o sistema de metas inflacionárias em vigor.

Metas de pobreza - A redução da pobreza constituiria a base do sistema de metas sociais. Ao conferir um peso maior às ações voltadas para as parcelas mais carentes da população, a meta de redução de pobreza concilia o atendimento aos mais necessitados com economias do lado fiscal. O pobre genuíno é barato. Caro é devotar aos segmentos altos da sociedade que se julgam médios, o grosso dos recursos sociais disponíveis que, a princípio, deveriam se voltar para a classe baixa. A correção dessa distorção, freqüentemente observada na aplicação de recursos públicos constitui o principal objetivo do sistema de metas sociais proposto.

Em segundo lugar, os indicadores de pobreza se baseiam no conceito de renda domiciliar per capita, incluindo rendas individuais diversas como salários, aluguéis, previdência, juros e transferências públicas. Esta síntese de efeitos diversos permite trabalhar com um único indicador, o que confere flexibilidade interna e simplicidade ao sistema, propriedades essenciais de qualquer instrumento de coordenação.a Outra vantagem é focar o debate público em torno de medidas de bem-estar social mais abrangentes do que, por exemplo, as taxas de desemprego.

A avaliação da extensão da pobrezab, por sua vez, envolve dois aspectos normativos: determinação da linha de pobreza e a escolha do indicador específico escolhido. No que se refere ao primeiro, a linha de indigência cobre apenas as despesas de alimentação dos domicílios para suprir necessidades calóricas mínimas que correspondem a R$73 por pessoa, segundo cálculos ajustados por diferenças de custo de vida sobre a Pesquisa de Padrões de Vida (PPV/IBGE). Obviamente, os pobres não querem só comida, mas vale como primeira abordagem ao problema.

Em relação ao segundo aspecto normativo, o indicador básico para o monitoramento da população-alvo dos programas sociais é a contagem do número de indivíduos pobres. Isto é, a avaliação da proporção da população cuja renda familiar seria insuficiente para adquirir uma cesta de bens de consumo capaz de satisfazer às necessidades básicas individuais. Cálculos sobre a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (PNAD/IBGE) revelam que a proporção de indigentes era de 29,3% em 1998.c

Criamos um indicador ( P1) para mostrar quanto cada pobre deveria receber de renda adicional para satisfazer as suas necessidades básicas. Ele constitui um indicador mais interessante que a proporção de pobres (P0) por diferenciar o muito pobre do pouco pobre.

A utilidade do P1 para o desenho de políticas de combate a pobreza é direta, pois informa os valores necessários para erradicá-la, assumindo que identificamos perfeitamente os pobres e a sua respectiva insuficiência de renda e que não houvesse desperdício de dinheiro público e nem custo operacional.

Em outras palavras, o P1 nos fornece a base de cálculo do custo do programa perfeito de erradicação da pobreza, capaz de içar os miseráveis até o piso de suas necessidades, nem um centavo a mais, ou a menos. Entretanto, talvez o maior irrealismo do indicador seja assumir que os não-pobres deixem de abocanhar os recursos do programa.

O custo mínimo da erradicação da indigência nacional seria de R$ 9,58/mês por brasileiro, o que corresponde a aproximadamente 3,93% da renda nacional, segundo a PNAD. O programa perfeito da erradicação da indigência custaria cerca de 18,8% do orçamento social das três esferas de governo, aí incluindo a Previdência Social. Portanto, recursos existem, basta vontade e competência política para realocá-los. A adoção das metas sociais tornaria o processo de reformas mais aceitável do ponto de vista político, na medida em que destinaria especificamente aos miseráveis os recursos fiscais poupados.

Finalmente, o indicador conhecido como P2 eleva ao quadrado a insuficiência de renda dos pobres, aumentando o grau de aversão à miséria e priorizando as ações públicas aos mais desprovidos. A idéia seria governo, Congresso e sociedade se comprometerem com metas de redução da pobreza medido por P2 ao longo do tempo. Vejamos a título de exemplo: um período de cinco anos com taxa de 3% ao ano de crescimento de renda per capita balanceado, sem afetar a desigualdade de renda, provocaria uma redução do P2 de 16,8%. Ao passo que se esse processo fosse acompanhado por uma redução da desigualdade brasileira para o nível paulista, medida pelo índice de Gini, obteríamos uma queda do P2 de 46,8%. Este exemplo ilustra a importância da utilização de medidas de pobreza que priorizem a redução de desigualdades como o P2 .

Surpresas Recentes - A última PNAD do IBGE, coletada em outubro de 1998, nos oferece a oportunidade de captar os primeiros impactos da recente onda de choques externos na pobreza. Como vimos, os índices de pobreza incorporam os efeitos dos dois elementos centrais do debate atual sobre a crise do trabalho brasileiro: o desemprego e o trabalho precário.

Os dados revelam que o P2 caiu 13,45% entre 1996 e 1998. Neste mesmo período a renda domiciliar per capita aumentou 2,91% e a proporção de pobres caiu 6,3%, perfazendo, em 1998, um total de 34 milhões de indigentes. É um número considerável, embora diminuindo percentualmente. Quanto ao emprego, as expectativas pós-crise asiática eram sombrias, pois a taxa de desemprego dessazonalizada subiu cerca de 30% a partir de janeiro de 1998. Os indicadores relativos à duração do desemprego, a demissão como motivo de desligamento e a extensão da informalidade aumentaram. Houve uma deterioração forte em várias frentes. Entretanto, os dados de pobreza não refletiram a crise que se anunciou nos indicadores de desempenho do mercado de trabalho.

A busca das razões para o descasamento entre os indicadores de pobreza e os de mercado de trabalho revela que entre 1996 e 1998, nas seis principais regiões metropolitanas onde os índices de desemprego do IBGE são computados, o P2 aumentou 3,06%. Ao passo que a pobreza baseada em renda do trabalho nessas mesmas seis regiões aumentou 11,02%. Em suma, no período 1996-98, quando usamos como indicadores sociais aqueles baseados em pesquisas mais ágeis de mercado de trabalho como a PME-IBGE (PED-SEADE), tendemos a superestimar a deterioração das condições de vida da população. Isso porque a onda recente de crises externas atingiu mais fortemente o mercado de trabalho metropolitano (em particular, o paulistano) do que outras fontes de renda e áreas geográficas.

Metas Inflacionárias e Sociais - Os governos se vêem constantemente diante do incentivo de produzir surpresas inflacionárias, a fim de "comprar" uma redução transitória do desemprego. Entretanto, os agentes privados, sejam empresas ou trabalhadores, passam a antecipar estes movimentos no processo de fixação de preços e salários.

A justificativa para a adoção da meta inflacionária é evitar que a população reajuste preços e salários como antecipação a comportamentos oportunistas por parte dos governos. Esta tentação é especialmente forte em anos eleitorais. Ao assumir o compromisso com as metas inflacionárias, o governo produz o mesmo desemprego, mas com menos inflação e incerteza. Nesse sentido, "regras (ou metas) são melhores que discrição".

Agora, além de ter sido o recordista mundial de inflação no período 1960-95, o Brasil hoje está prestes a liderar o ranking da concentração de renda. As metas sociais visam nortear a ação pública permitindo comparar diretamente os impactos de programas sociais, reformas estruturais e políticas macroeconômicas sobre o bem-estar da população carente. Busca-se, dessa forma, aumentar a progressividade e a durabilidade dos benefícios da política social. O alongamento das ações voltadas para os pobres, dissociadas de ciclos eleitorais, e mais racionalidade social ao debate são os dois produtos principais do sistema proposto.

Em termos geográficos, a criação de um sistema de metas sociais como a criação do fundo para o combate à pobreza, no Congresso Nacional, deveriam ser implantados para todo o país, uma vez que a erradicação da pobreza não pode ser levada à frente de maneira sustentável pelos municípios mais pobres isoladamente. É sintomático que as melhores práticas sociais brasileiras da atualidade são gestadas e paridas em municípios ricos.

Como exemplos dessa excelência temos o Favela Bairro do Rio e o Bolsa-Escola de Brasília, cidades com o maior nível de educação média entre as regiões metropolitanas. Caberá ao governo federal coordenar e financiar a difusão das boas práticas nos bolsões de pobreza. A quantificação desagregada a nível municipal é fundamental no processo, pois a unidade administrativa natural para o repasse de recursos são os municípios (vide mapa). Os municípios são o fórum privilegiado tanto no que se refere a identificação dos pobres, como na implantação de políticas de assistência social, mas o sistema de metas deveria emanar do governo federal.

Marcelo Neri é do Centro de Políticas Sociais - IBRE/FGV

in "Conjuntura Econômica", maio 2000.
(www.cps.fgv.br/conjuntura.htm)

(16/8/2000 18:28:17 )